10.4.08

Um ano a blogar

Há um ano atrás comecei este espaço com dois versos do poema a Partida, do livro No Lado Esquerdo da Alma, de Mário de Sá-Carneiro. Um ano passado (e a que velocidade!) posto o poema na totalidade.

Partida

Ao ver escoar-se a vida humanamente
Em suas águas certas, eu hesito,
E detenho-me às vezes na torrente
Das coisas geniais em que medito.

Afronta-me um desejo de fugir
Ao mistério que é meu e me seduz.
Mas logo me triunfo. A sua luz
Não há muitos que a saibam reflectir.

A minh'alma nostálgica de além,
Cheia de orgulho, ensombra-se entretanto,
Aos meus olhos ungidos sobe um pranto
Que tenho a força de sumir também.

Porque eu reajo. A vida, a natureza,
Que são para o artista? Coisa alguma.
O que devemos é saltar na bruma,
Correr no azul à busca da beleza.

É subir, é subir além dos céus
Que as nossas almas só acumularam,
E prostrados rezar, em sonho, ao Deus
Que as nossas mãos de auréola lá douraram.

É partir sem temor contra a montanha
Cingidos de quimera e de irreal;
Brandir a espada fulva e medieval,
A cada hora acastelando em Espanha.

É suscitar cores endoidecidas,
Ser garra imperial enclavinhada,
E numa extrema-unção de alma ampliada,
Viajar outros sentidos, outras vidas.

Ser coluna de ferro, astro perdido,
Forçar os turbilhões aladamente,
Ser ramo de palmeira, água nascente
E arco de oiro e chama distendido.

Asa longínqua a sacudir loucura,
Nuvem precoce de subtil vapor,
Ânsia revolta de mistério e olor,
Sombra, vertigem, ascensão - Altura!

E eu dou-me todo neste fim de tarde
À espira aérea que me eleva aos cumes.
Doido de esfinges o horizonte arde,
Mas fico ileso entre clarões e gumes!

Miragem roxa de nimbado encanto
Sinto os meus olhos a volver-se em espaço!
Alastro, venço, chego e ultrapasso;
Sou labirinto, sou licorne e acanto.

Sei a distância, compreendo o Ar;
Sou chuva de oiro e sou espasmo de luz;
Sou taça de cristal lançada ao mar,
Diadema e timbre, elmo real e cruz.

O bando das quimeras longe assoma.
Que apoteose imensa pelos céus!
A cor já não é cor - é som e aroma!
Vêm-me saudades de ter sido Deus...

Ao triunfo maior, avante pois!
O meu destino é outro - é alto e é raro.
Unicamente custa muito caro:
A tristeza de nunca sermos dois...

4 comentários:

Tempus_Fugit disse...

Os meus parabéns pela efeméride de há um ano atrás teres tido a feliz ideia de partilhar tudo isto com os ilustres conhecidos e desconhecidos :-D

Beijo!

Ana disse...

E como é q estás a lidar com o facto de só teres aparecido aqui há uns meses? Deve ser caso para terapia :-P

Obrigada ;-)

Tempus_Fugit disse...

Estou a lidar bem, por enquanto. Até porque em certa altura dei uma olhadela aos posts por tema :-P Ainda bem! Não ganho o suficiente para terapia...

Ana disse...

Cuidado, n vás ficar a precisar precisamente por isso. Eu n me responsabilizo!